8 dezembro 25 Lisboa e Vale do Tejo
Pedro Novo | Um Cavalo de Troia Chamado Conceção/Construção
O modelo de contratação pública por concurso “Conceção-Construção” é objetivamente um logro, criado ardilosamente para ludibriar o interesse na construção de obra pública em Portugal.
Um Cavalo de Troia que, sob o manto de uma putativa celeridade e eficiência, relega para 2º plano, a fase de projeto que, esvaziando-a da sua função de controlo, de qualidade e previsibilidade, amarra o Estado a contratos danosos, que servem sobretudo os interesses de quem constrói e não de quem encomenda.
Condiciona o processo e o Projeto na autonomia técnica e critica, de quem projeta e está ética e deontologicamente obrigado a salvaguardar o interesse público, como é o caso do Arquiteto.
A Linha TGV, modelo viciado
O caso da primeira fase da linha de alta velocidade Porto–Lisboa (TGV) é o retrato mais evidente de um modelo que nasce viciado. Sem surpresa, o concurso foi ganho pelo consórcio liderado pela construtora Mota-Engil. Adjudicada a empreitada, a construtora pretende agora alterar profundamente o projeto inicial.
Quer mudar a localização da estação de Gaia, prevista para Santo Ovídio, desviando-a para Vilar do Paraíso! O projeto do concurso aprovado previa uma única ponte rodoferroviária, mas a empresa planeia agora erguer duas pontes autónomas, alterando totalmente os pressupostos do projeto, os impactos socias, urbanos e paisagísticos inicialmente previstos e estudados.
E, como se esta manigância não bastasse, a construtora pretende ainda não executar cinco quilómetros de túneis previstos no caderno de encargos, condição para a adjudicação da empreitada, propondo agora um desvio que obrigará a mais delongas processuais, mais expropriações, mais custos para o Estado, maior densidade, com maiores impactos, não estudados, na paisagem. Desta forma, o Estado fica refém de interesses que não os seus, porque o contrato o impede de reagir e de proteger os seus interesses, os interesses do país e dos portugueses.
Inépcia, negligência ou outra razão?
O recém-eleito presidente da Câmara Municipal de Gaia tentou reagir, criando uma comissão de acompanhamento extemporâneo para o projeto. Como o próprio reconheceu publicamente, a Infraestruturas de Portugal e a Câmara Municipal do Porto tinham conhecimento prévio das soluções alternativas que agora vêm a público, e os vínculos contratuais tornaram-nas quase irreversíveis.
O mesmo autarca, Luís Filipe Menezes, exige que “toda e qualquer estação que seja definida tem que ter metro, estacionamento e acessibilidades sem custos para Gaia”, um gesto político compreensível, mas que ilustra o grau de descontrolo em que o Estado caiu. Resta saber como chegamos aqui, se por inépcia, negligência política ou outra razão qualquer? Os municípios tentam tardiamente e em desespero de causa, impor bom senso depois do contrato ter sido lavrado e entregue à construtora, sem salvaguardas para o Estado. Se não fosse esta história real, achá-la-íamos um absurdo, pelo absurdo que representa!
Conceção-Construção secundariza Arquitetura e engenharias
E eis o cerne do problema: a modalidade de concurso/empreitada Conceção-Construção captura e afasta o Estado do seu papel de promotor e fiscalizador, e mais grave ainda, retira autonomia, preponderância e autoridade ao projeto, ou seja, coloca a Arquitetura e as Engenharias num plano marginal em todo o processo.
Neste modelo, clara e factualmente danoso para o erário público, o Estado renuncia de forma incompreensível e irresponsável ao seu papel de guardião do interesse público. Por sua vez o arquiteto, fortemente condicionado vê reduzida a sua capacidade para liderar e coordenar o projeto e o processo, no espírito de salvaguarda do interesse público, que, tal como referi anteriormente é condição a que está ética e deontologicamente obrigado.
Tudo se confunde num mesmo movimento: quem deveria pensar criticamente limita-se a executar, quem deveria supervisionar limita-se a aceitar e a aprovar, e quem paga e habita fica entregue a obras desenhadas para cumprir prazos e maximizar lucros, não para servir e transformar o território com qualidade, com função e com segurança, como fundações para a vida de quem habitará e utilizará o edificado e a paisagem. Assim em vez de corrigir e desmontar esta ilusão, o Governo insiste em distorcê-la e aprofundá-la, incumprindo com a Resolução de Conselho de Ministros n.º 45/2015, que aprovou a Política Nacional de Arquitetura e Paisagem (PNAP), deliberando como objetivo principal a promoção da qualidade da Arquitectura e da paisagem e evidenciar o seu papel como fator estratégico para a qualidade de vida e bem-estar dos cidadãos.
O papel do Arquiteto e as soluções europeias
As novas medidas que promovem o uso da Conceção-Construção em obras de construção modulares são um golpe duplo: favorecem as construtoras com sistemas industriais a que a Arquitetura se deve sujeitar, adaptar e com eles trabalhar, retirando-a do seu papel fulcral no processo construtivo, enquanto método, estudo e inovação na busca das melhores soluções construtivas para melhor servir a sociedade e o país. Neste contexto o Arquiteto deixa de conceber para apenas validar soluções pré-fabricadas. A isto soma-se o engodo fiscal do IVA a 6% nos projetos inseridos nestes contratos, apresentado como benefício para os projetistas, mas rapidamente absorvido por quem gere a empreitada.
A Europa já percebeu o erro e começou a recuar. Nos Países Baixos, auditorias a contratos “Design–Build–Finance–Maintain–Operate” (DBFM), em 2022 avaliaram os últimos 15 anos de contratos DBFM, onde se conclui que as eficiências prometidas não se confirmaram, que o controlo público sobre a qualidade foi reduzido, e que a consistência e qualidade arquitetónica sofreu com a lógica de custo mínimo e escassa margem de intervenção do Estado.
No Reino Unido, as avaliações de obras “design-build” demonstraram através do relatório da National Audit Office (NAO) intitulado PFI and PF2 que embora se esperasse que a transferência de risco para o privado resultasse em menor custo e qualidade superior, não há evidência robusta de que isso tenha acontecido, e que os custos financeiros são de facto mais elevados.
Falta de controlo público
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), através do documento “Procurement strategy in major infrastructure projects” (2021), afirma que o modelo de Conceção-Construção reduz a flexibilidade e a capacidade de controlo público. Considera não ser a melhor escolha e recomenda que organizações como Nye Veier (empresa pública norueguesa, criada em 2015 pelo Ministério dos Transportes da Noruega, com o objetivo de projetar, construir e operar parte significativa da rede de autoestradas e vias rápidas nacionais), desenvolva esforços para criar contratos “Design-Bid-Build”, modelo onde o Projeto é independente da Construção.
Portugal, contudo, e sem surpresa, insiste em repetir erros, dos quais congéneres europeus estão a desistir após décadas de más experiências. A pressa e a narrativa sobre a celeridade e “eficiência” servem de máscara à rendição do Estado. As obras públicas transformam-se em feudos empresariais, cemitérios de oportunidades para Arquitetos e restantes projetistas, e laboratórios de lucro para construtoras.
O Estado abre portas ao Cavalo de Troia
O que está em causa não é apenas a qualidade da Arquitetura e da Construção, é a garantia e salvaguarda do interesse do país e dos cidadãos, através da utilização correta dos dinheiros públicos, da garantia de um planeamento eficaz, correto e consequente, da preservação de um espaço público e Paisagem de qualidade e com valor acrescentado. Ao entregar a conceção à lógica industrial da empreitada, o Estado abre as portas a um cavalo de Troia, a um modelo que entra sob o disfarce da eficiência, corrói o interesse público, silencia o Arquiteto e fragiliza o próprio Estado.
É urgente corrigir o rumo da contratação de obra pública, e isso só se fará com uma reforma clara das regras que (des)norteiam o atual modelo. O Código dos Contratos Públicos precisa de ser revisto para devolver transparência, equilíbrio e verdadeira celeridade aos processos. Os concursos devem voltar a separar a fase de projeto da fase de construção, garantindo que as escolhas são feitas pela qualidade e não apenas pelo preço mais baixo, e que as decisões concernentes ao projeto são tomadas com autonomia e independência técnica. É essencial reforçar a fiscalização, assegurar revisões independentes de projeto e impor consequências para quem altera, sem justificação, o que foi aprovado. Não se trata de eliminar o modelo, mas de o disciplinar, devolvendo ao Estado e aos arquitetos a autoridade e a responsabilidade que não podem, por razões óbvias, perder.
E, não obstante todas as tragédias que daqui possam advir, ainda temos de assistir ao triste espetáculo de ver decisores erguerem-se, e com regozijo aplaudirem o cavalo que deixaram entrar e a destruição de que serão mentores se não interromperem imediatamente esta “estratégia” de governação.
Pedro Novo, presidente da Secção Regional de Lisboa e Vale do Tejo
Fonte: Revista Traço/Jornal Construir
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