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3 novembro 25 Lisboa e Vale do Tejo

Opinião | "Vender pão para comprar farinha..."

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"Vender pão para comprar farinha..."
 
O caso da Quinta das Conchinhas, em Chelas, é o retrato fiel da incapacidade, da descoordenação e da falta de coerência e estratégia das políticas públicas de habitação.
 
Em 2022, o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) lançou um concurso de concepção para 168 habitações acessíveis. Um concurso público exemplar, com assessoria técnica e jurídica da Secção Regional de Lisboa e Vale do Tejo da Ordem dos Arquitectos, que garantiu transparência e rigor em todo o processo.
 
Em 2023, a equipa liderada por Ricardo Bak Gordon, com Inês Lobo e Ricardo Carvalho, venceu o concurso com a participação de dezenas de equipas multidisciplinares, constituídas por arquitectos e engenheiros de todo o país.

Em 2024, o projeto foi totalmente desenvolvido, nomeadamente o projeto de licenciamento, o projeto de execução e coordenação de especialidades. O processo ficou em standby aguardando indicações para o início dos trabalhos de construção. Recentemente, o Estado decide vender o terreno em hasta pública.

O argumento apresentado é quase insultuoso: a alienação do terreno servirá para financiar políticas públicas de habitação. Vende-se o que já estava destinado à habitação pública, para financiar habitação pública. Um malabarismo financeiro travestido de estratégia, que expõe o vazio de uma governação que confunde planeamento com improviso e responsabilidade com descompromisso.

Está em causa, não apenas a indignação dos arquitetos e das suas equipas, mas também a evidente erosão do sentido de responsabilidade e missão do Estado, sobretudo no que à previsibilidade e confiança, neste procedimentos concerne.
 
As dezenas de arquitetos que concorrem a estes concursos de concepção, investem milhares de horas e dezenas de milhares de euros do seu próprio bolso, movidos pela convicção de que a arquitetura pode e deve servir o bem comum. Quando no fim da linha, o Estado se demite da execução do compromisso que promoveu, traindo a confiança que os arquitetos nele depositaram, e desvalorizando, menorizando e inquinando a ideia de serviço e interesse público.
 
O paradoxo é ainda mais evidente e grave quando se sabe que o projeto se encontra pronto para empreitada. Cai assim um processo e um projeto de habitação pública, relevante quer pela sua escala e número de fogos, quer pela sua qualidade arquitetónica e urbanística.
Transformar um projeto de interesse público em ativo financeiro para venda é inverter os princípios de política pública.
 
É também desrespeitar a Arquitetura enquanto instrumento de transformação social. Há quem lhe chame realismo orçamental, eu chamar-lhe-ia irresponsabilidade política. Não há política de habitação digna que se construa à custa da destruição da confiança e da desvalorização da Arquitetura. Em tempos de crise habitacional, o Estado tem a obrigação de liderar pelo exemplo não de desistir à primeira oportunidade.

Pedro Novo
Presidente da Secção Regional de Lisboa e Vale do Tejo da Ordem dos Arquitectos
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